Ucrânia ainda tem solução política, mas o tempo está se esgotando
Atualizado em 21 de fevereiro, 2014 - 05:22 (Brasília) 08:22 GMT
Em 2001, eu estava em Kiev
fazendo uma série de reportagens para a BBC sobre os dez anos da queda
da União Soviétiva. Acompanhado de um tradutor, entrei em uma estação de
metrô não muito longe da Praça da Independência, que hoje é a base dos
oposicionistas que obstinadamente enfrentam as forças do presidente
Viktor Yanukovich.
Paramos uma pessoa para lhe perguntar sobre o
passado - se ela sentia falta da União Soviética, se a vida após a
independência era melhor. Meu tradutor já me advertira que havia pessoas
em Kiev que falavam russo, outras, que falavam ucraniano.
Abordamos essa primeira pessoa em
russo. A conversa transcorreu normalmente. Assim que terminamos a
entrevista, porém, uma senhora correu em nossa direção. Ela tinha cerca
de 50 anos e sua atitude me lembrou a de uma severa professora de ensino
fundamental, dando uma bronca em seus alunos.
"Estamos na Ucrânia. Vocês devem falar
ucraniano! A língua russa não pertence a este país", disse ela. O
tradutor e ela bateram boca a seguir, e ele não me disse imediatamente o
que discutiram.
"Ela vem do oeste", resumiu ele depois, me
explicando o que ocorrera. Estava claro para mim um dos mais importantes
fatos a respeito do país, a sua famosa divisão, que hoje está na raiz
da violência na ex-república soviética.
Raízes históricas
A divisão, com o oeste mais nacionalista,
falando ucraniano, e o leste próximo à fronteira russa, com forte
influência dos poderosos vizinhos, se manteve durante toda a era
soviética, tendo origem anterior à Revolução de Outubro.
Até o início do século 20, boa parte do país
pertencia à Rússia czarista, enquanto que o leste, incluindo o hoje
bastião oposicionista de Lviv, estava ligado ao Império Áustro-Hungaro.
Mas a ligação dos russos com o território
ucraniano vem de muito antes. A Ucrânia foi berço da civilização russa,
que lá floresceu no século 9 até ser obliterada pelo avanço dos mongóis,
no século 13. O renascimento com Ivan, o Terrível (1530-1584), viria
com a sede para recuperar os territórios perdidos para Genghis Khan e
seus sucessores.
Isso explica parte do interesse histórico da Rússia pela Ucrânia. O legado soviético só acrescenta peso a isso.
A Ucrânia foi um dos signatários originais do
fim da URSS. Mas a assinatura, em 8 de dezembro de 1991, do tratado que
criaria a Comunidade de Estados Independentes (CIS) só viria sete dias
depois de um referendo na Ucrânia terminar com apoio de 90% da população
à independência, refletindo o apelo nacionalista em voga na ocasião.
Mas a separação ucraniana nunca foi bem
absorvida em Moscou, onde uma influente elite ucraniana tinha poder de
decisão durante os anos soviéticos e permaneceu em Moscou mesmo após o
surgimento do novo país.
Pacto de elites
Após a independência, a estabilidade da Ucrânia
foi garantida por um pacto das elites. Com o respaldo russo, como nos
tempos soviéticos, a Ucrânia permaneceu unida.
Em 2004, o presidente russo, Vladimir Putin,
imaginou que a política ucraniana caminharia pelas trilhas tradicionais
com o apoio de Moscou. Viktor Yanukovich – que vem do leste do país -
foi eleito presidente em eleições contestadas e, em pouco tempo, a
contestação se transformou em um turbilhão laranja nas ruas de Kiev.
A Revolução Laranja forçou Putin, pego de
surpresa, a aceitar um novo acordo com as elites nacionalistas do oeste,
representadas por Yulia Timoshenko e Viktor Yushchenko, que então se
tornaria presidente. Viriam anos difíceis nas relações entre os dois
países, marcados por disputas no fornecimento de gás russo ao país.
Yanukovich finalmente chegaria ao poder em 2010,
em um momento de enfraquecimento da oposição nacionalista. De volta à
Presidência russa em 2012, Putin avançou com seu plano para restabelecer
boa parte da esfera de influência soviética.
O lançamento de uma União Aduaneira unindo
Belarus, Rússia e Cazaquistão, em 2010, e da proposta para uma União
Econômica Euroasiática com esses e outros países, surgiram como
antagonistas de uma possível ampliação da União Europeia rumo à Ucrânia,
vista por Moscou como candidata natural a integrar essas organizações.
Finalmente, a frágil estabilidade entre as
elites ucranianas foi destruída quando Yanukovich, enfrentando grave
crise econômica, tomou sua decisão de não buscar uma maior integração
com a União Europeia, desencadeando os protestos que hoje fazem sangrar o
país. Em seguida, a Rússia lhe cederia uma ajuda de US$ 15 bilhões para
salvar a economia.
Cenários
A atual situação da Ucrânia contempla alguns
possíveis cenários para a resolução do conflito. Nenhum deles mostra uma
saída fácil.
Um cenário é o da diplomacia. Primeiramente, a
diplomacia tradicional, de mediadores e longas conversas. Até agora, a
estratégia não se mostrou muito promissora e, em uma atmosfera de ânimos
exaltados pelas mortes, só tende a se mostrar mais limitada.
Em segundo lugar, a diplomacia dura das sanções,
pressionando o governo ucraniano a ceder na marra. A União Européia
anunciou sanções nesta quinta-feira, mas – como bem mostra a experiência
iraniana – elas podem não ser eficientes. Ainda mais com o governo de
Yanukovich recebendo um forte respaldo de Moscou.
Outro cenário é o estabelecimento de uma
força-tarefa envolvendo representantes do governo russo, dos EUA, da
União Europeia, da oposição e da Presidência ucraniana. A negociação
visaria o estabelecimento de um novo pacto das elites ucranianas, sendo
que as pró-UE esperariam, de alguma forma, uma nova promessa de
integração com o bloco.
Contudo, dificilmente Moscou aceitaria ceder
muito a essas elites a favor da integração com o bloco europeu. Também é
difícil saber que tipo de proposta seria aceita pela oposição nesta
altura dos acontecimentos. A violência evoluiu a tal ponto que é
possível que ela não aceite apenas mais promessas.
Como parte desse pacto, Yanukovich poderia
simplesmente ceder, voltando atrás em sua decisão de não se aproximar da
UE. Mas isso pode não ser suficiente, já que a oposição provavelmente
também exigiria sua saída e que fosse julgado pela morte de
manifestantes.
Uma alternativa semelhante, ainda como parte do
pacto, é que a oposição ceda. Nesse caso, seria essencial que União
Europeia flexionasse seus músculos e a estimulasse a aceitar isso.
Nesse caso, surgem as seguintes questões: a
União Europeia está preparada para abrir mão da Ucrânia? Está preparada
para dizer a aqueles que dizem estar lutando pelos valores europeus que
devem desistir desses valores? Não seria isso uma perigosa contradição,
que enviaria um sinal a Moscou de que pode fazer o que bem entender?
Guerra civil e divisão
Talvez o cenário mais apocalíptico seja este:
Yanukovich mantém sua atual posição e tenta eliminar a oposição,
enquanto que a oposição tenta assumir o controle. Trata-se precisamente
do que vem ocorrendo, com uma tendência de escalar para uma guerra
civil.
Um conflito generalizado, em todo o país, ainda
não está ocorrendo. Por enquanto, a violência se concentra em Kiev, sem
sinais de escalada no leste, mas com episódios preocupantes em pontos do
oeste.
Na cidade de Lutsk, manifestantes armados
invadiram o gabinete do governador local, o arrastaram para fora e o
algemaram. Centenas acompanharam discursos em um palco improvisado, em
meio a pedidos de renúncia do presidente.
Também há informações de que oposicionistas
invadiram uma prisão em Lviv e libertaram todos os detentos –
aparentemente sem que a polícia esboçasse reação. Em outra cidade do
oeste, Ivano-Frankivsk, manifestantes teriam tomado bases da polícia e
das forças de segurança e da Promotoria de Justiça.
Daniel Sanford, repórter da BBC em Kiev, fala
que "o apoio silencioso que muitos na Ucrânia Ocidental, particularmente
em Lviv, estão dando à violência (…) significa que uma separação entre
Ucrânia Ocidental e Ucrânia Oriental está sendo discutida abertamente,
apesar de poucas pessoas afirmarem querer isso".
Se o silêncio está se transformando em ações
claras de apoio aos oposicionistas, de desafio ao poder
institucionalizado no oeste – como os recentes desdobramentos no oeste
sugerem – é sinal que a divisão está sendo levada mais a sério.
Mas é difícil imaginar que uma separação ocorra
sem um confronto maior, envolvendo também o ainda mais silencioso leste
próximo à fronteira russa – e, possivelmente, a própria Rússia.
*Rafael Gomez é mestre em estudos da Rússia e da Europa Oriental pela Universidade de Birmingham, Reino Unido
http://www.bbc.co.uk/
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